Os "Lobos do Mar" e a Arte de Xávega na Praia da Vieira de Leiria
Não tem este texto qualquer pretensão de constituir uma crónica nem tão pouco um ensaio sobre a Arte de Xávega na Praia da Vieira. Ele resulta apenas da narrativa de factos reais vividos há muito como observador, factos esses que despertaram a sensibilidade de um adolescente e vistos agora, à distância, com os filtros do factor tempo.
Estamos nos primeiros anos da década de sessenta. O palco da acção é a Praia da Vieira para onde, anualmente, durante o mês de Agosto, a minha família se deslocava com "armas e bagagens" para gozar as férias de verão.
Naquele tempo, tratava-se de uma povoação relativamente pequena, com uma tipicidade própria das aldeias de pescadores, onde ainda abundavam as casas de madeira, não obstante já existirem construções doutros materiais, em especial, blocos feitos no local, de modo bastante artesanal, com cimento e areia da praia. Estas eram na sua maioria de pequenas dimensões e muitas delas ocupavam o mesmo espaço da anterior habitação em madeira.
No aspecto demográfico é de realçar o número limitado de habitantes. É preciso notar de que se tratava de uma localidade com uma costa climaticamente muito exposta aos ventos do norte e noroeste, de características dunares, com grandes movimentações de areias e um mar alteroso em grande parte do ano. Mesmo assim, terá sido a actividade piscatória que terá contribuido para a fixação populacional, em especial a pesca do arrasto. Só que esta era apenas possível nos meses de verão quando as condições atmosféricas e o estado do mar favoreciam o seu exercício. Logo, estamos a ver que se tratava duma actividade sazonal de pura subsistência. Para complementar os parcos rendimentos, os homens procuravam trabalho noutras actividades, sendo a mais relevante como operários nas fábricas de limas em Vieira de Leiria. Neste caso, a pesca era exercida depois do trabalho fabril e aos fins-de-semana. O quotidiano era ver esses trabalhadores fabris chegarem em correria nas suas bicicletas, depois da jornada de trabalho, engolirem à pressa uma frugal merenda e, entretanto, já o som arrastado dos búzios os chamava para o mar. Sons diferentes identificavam a respectiva campanha. Na época a que me reporto, existiam três campanhas: os "Teimosos", os "Falcões" e a "Redinha". As mulheres, dedicavam-se à venda de peixe nos mercados semanais do concelho, bem como a distribuição de porta-a-porta nos arredores, para onde se deslocavam a pé e com as canastras à cabeça. Daqui se pode imaginar quão duro era a vida destas gentes. Nos meses de verão, conseguiam auferir rendimentos suplementares alugando casas, muitas das vezes o seu local de habitação, transferindo-a para anexos, em alguns casos, sem o mínimo de condições de habitabilidade.
Voltando à actividade piscatória, a mais importante era a de arrasto, na vertente conhecida como Arte de Xávega, exercida com barcos de madeira, em forma de meia lua, com tamanho apreciável e dotados de quatro grandes remos. Por serem muito pesados, era necessária a força de braços de um grande número de remadores que, sob o comando do arrais e com o esforço cadenciado, conseguiam penetrar a massa de água oceânica e enfrentar as ondas. Logo que o barco entrava na água, começava a ser largada a corda cuja ponta tinha ficado em terra. O arrais, à medida que o barco avançava mar dentro, ia sempre libertando mais corda e, quando já estavam a uma distância considerável, entre um e três quilómetros, a outra ponta era amarrada à rede de cerco e esta, era igualmente largada cada vez mais longe. O fim da rede dava lugar ao saco. Depois do cerco feito, iniciava-se a viagem de volta, com a largada em sentido inverso, da rede oposta à primeira e, posteriormente, da corda respectiva, até a sua ponta atingir a praia.
Lembra-me o relato de pescadores de idade mais avançada, que em geral ficavam em terra a remendar as redes que se rompiam com o uso, descrevendo os vários desastres que ocorreram no mar, com consequências trágicas, enlutando muitas famílias. Como os barcos eram muito pesados e de difícil manobra, o seu andamento era lento e era necessário a todo o custo conservar a embarcação direita, dado que se ela ficasse atravessada, facilmente virava com as ondas, sepultando os pescadores que se encontravam a bordo. Os desastres mais trágicos foram causados por este facto e mesmo já junto à praia. O regresso era mais perigoso do que a entrada. Na entrada, a segurança do barco era exercida à custa de golpes de remos. À voz do arrais, respondiam os pescadores com remadas vigorosas que davam o impulso necessário à proa para furar as ondas. No regresso, com a ondulação pelas costas, era imprescindível evitar o arrastamento descontrolado da embarcação. A travagem era exercida pelo arrais ao enrolar a corda no bico da ré, dado que aquela, por suportar o peso da rede, evitava esse arrastamento.
Após a chegada do barco, passava-se à fase de puxar as redes para a praia que numa primeira fase era exercida por juntas de bois e, anos mais tarde, dado o custo ser elevado, à força de braços, num esforço hercúleo.Ao puxar a rede, era necessária a tracção combinada dos dois lados, para que estes viessem alinhados e o saco saisse direito. A coordenação das operações era exercida por um pescador com experiência e, na ponta final, geralmente pelo próprio arrais que, com estridentes toques de apito, orientava os condutores das juntas de bois. Esses condutores aguilhoavam os animais sempre que era necessária uma força suplementar que permitisse que a rede saísse mais rapidamente do mar. Quando o saco vinha cheio de peixe, ainda retenho na memória as manifestações de alegria dos pescadores, gritos de regozijo, saltando e atirando cestos e cabazes pelo ar. Mas, muitas das vezes a pesca era inglória, com o saco quase vazio ou o peixe de tal maneira miúdo que era atirado ao mar. Também em períodos de abundância de caranguejo, estes crustáceos eram igualmente deitados fora por não terem valor comercial, sendo frequente ver os pescadores descalços como sempre, ao abrirem o saco, sofrerem picadas de peixes-aranha e mordeduras de caranguejos cujas pinças se ferravam nos dedos dos pés, sendo necessário sacudi-los para eles se soltarem. A experiência dizia que quando havia muito carangueijo o peixe não abundava.
Assisti uma vez a um episódio que demonstra bem como era dura a luta destes homens. Numa jornada mais afortunada, o saco vinha completamente cheio e o peso do pescado era tal que as malhas rebentaram, abrindo um enorme buraco. Tinham apanhado um cardume de corvinas de grande tamanho. Pelo buraco, estavam-se a escapar grande número de peixes, mesmo à beira da praia. Então os pescadores, no intuito de salvar o fruto da sua labuta que ainda se mantinha no saco, fizeram uma barreira, colocando os seus corpos semi-nús colados ao buraco, dificultando a saída das corvinas. Apesar dos seus peitos ficarem ensanguentados com os ferimentos recebidos, conseguiram mesmo assim, capturar mais de 600 exemplares daquela espécie, na maioria, com muitos quilos de peso.
Na actividade piscatória nunca ninguém enriqueceu. Mesmo quando as capturas de peixe eram abundantes e, após a montagem duma lota improvisada na areia, de forma quadrangular e constituída por quatro estacas de madeira e uma corda à volta, o peixe era vendido em leilão, sendo este sempre dominado pelos intermediários que, chegando nas suas camionetas à hora da lota, licitavam os lanços de pescado. Os pescadores tinham de se sujeitar aos preços oferecidos porque só assim conseguiam vender o produto do seu trabalho. Do montante da venda ainda eram deduzidos os impostos, logo pouco sobrava. Tão escasso proveito para tão grande esforço. Como era dura a vida do mar!...